A vergonhosa exportação de pacientes com câncer para outros estados e os traumas do exílio involuntário de amapaenses
Por Mariléia Maciel
Hoje, 4 de fevereiro, é o Dia Mundial do Câncer, criado pela União Internacional para o Controle do Câncer para estimular ações, inspirar iniciativas e mudanças e salvar vidas. Hoje também completa 1 mês que precisei sair do meu estado, Amapá, para buscar a cura, salvar minha vida, e 10 dias que iniciei meu tratamento quimioterápico pelo SUS, no Rio Grande do Norte. Assim como eu, dezenas de amapaenses são obrigados a fazer esse exílio involuntário, por força da precariedade e falta de humanidade nas condições oferecidas pelo Estado para pessoas vítimas dessa doença, que se não for diagnosticada e tratada a tempo, traz sofrimento, mutila, queima, envenena e mata, não somente o paciente, mas arrasta junto nessa esteira seletiva, família e amigos, e deixa os afetados com a triste sensação de fracasso.
Todos sabem, tem conhecimento, que o diagnóstico e tratamento do câncer nunca foi prioridade para as gestões com atribuições para tomar decisões a respeito do assunto no Amapá. São anos de reclamações, reivindicações, dor e perdas, por falta de medidas que de fato podem mudar tudo isso. Constroem uma parede, adquirem um equipamento, tem inauguração, festa, foto, depoimentos emocionados, mas por trás dessa cortina colorida e confetes, a realidade é dura, fria, reflexo da incompetência e falta de amor e responsabilidade, enxergam os pacientes de câncer como pessoas condenadas, já mortas. Pra que investir em alguém que não vota?
Esse descaso é muito antigo e sair do Amapá é um escolha entre dar uma chance a vida ou morrer. São centenas de pessoas que precisam aceitar com gratidão e lágrimas nos olhos a “benevolência” do Tratamento Fora de Domicílio (TFD), que é mais um remédio amargo que é tem que ser engolido. E seguem para Porto Velho, Barretos, Goiânia, e outras cidades em que os governos, por piores que sejam, não deixam estes doentes desassistidos, e as instituições filantrópicas trabalham duro, conseguem apoio para que menos pessoas morram em uma cama por falta de medicação. Nestes estados que recebem tão bem os amapaenses, a situação é dura, muitas vezes até humilhante por falta do pagamento do TFD que além de não ser muito, ainda atrasa. É constrangedor e dolorido, porque essa doença exige muito do corpo, da mente e das emoções, e se algo não vai bem, o risco de piorar é grande.
Essa falta de dignidade e responsabilidade está tão presente em nossa realidade, as pessoas se acostumaram a conviver com esse descaso, que até instituições consagradas nacionalmente por seu trabalho para prevenir e evitar que a doença prolifere ou mate são envolvidos nesta teia sinistra. Caso do Hospital do Amor, reconhecido em todo o Brasil pelo eficiente trabalho, foi instalado em Macapá gerando expectativa e esperança, para fazer o rastreamento e prevenção. Uma grande luta e pressão da população, organizações, pacientes, famílias, fez com que autoridades e parlamentares finalmente entrassem na guerra e garantisse sua instalação.
Um esforço da Bancada amapaense destinou emendas, o GEA fez um investimento para instalação elétrica, hidráulica e esgoto e assinou um convênio com Henrique Prata, assumindo a responsabilidade de custear a manutenção, funcionamento, exames, recursos humanos, água, luz, internet. Tudo perfeito, e o Hospital do Amor e mais uma carreta entraram em funcionamento em dezembro de 2018 com a previsão de realizar 60 exames por dia para detectar câncer de mama e colo do útero. O prédio é lindo, limpo, espaçoso, os profissionais bem capacitados e educados, um primor. Campanhas chamavam as mulheres para realizarem os exames, incentivavam a prevenção, e chegaram a lamentar a baixa procura.
Em 2020 eu, como todos os anos, fiz meu preventivo, devido uma inocente bolinha que insistia em meu seio direito, que sempre era identificado como algo inofensivo, mas que precisava de atenção e observação. Fui ao Hospital do Amor em julho daquele ano, atendimento impecável. O resultado sairia em 2 MESES. Tudo bem, não tinha crescido a bolinha, era só pra acompanhar mesmo. Passados dois meses o resultado não saiu. Liguei, acredito que em outubro atrás do resultado e me disseram que “se não deram retorno era porque estava tudo ok”. Se estava tudo normal para eles, porque eu haveria de me preocupar e insistir pelo exame e laudo? Achei normal e muitas mulheres conhecidas diziam também que não receberam o resultado mas que estava tudo bem. Em 2021 eu senti que a bolinha estava estranha e maior. Consegui marcar meu preventivo para julho, e assim fiz. O resultado sairia em setembro, mas eu iria esperar, poxa, tratava-se do Hospital do Amor, não tinha porque colocar em dúvida anos de trabalho. Eu ainda não sabia que pra quem tem câncer, um dia a mais de espera é um dia a menos de vida. Continuei minha vida normal, preocupada, mas crente que “se não ligaram, estava normal”. Começou aí minha saga para ter o resultado, porque qualquer consulta posterior, iriam me perguntar e eu queria apresentar.
Nenhum telefonema, nem email, correspondência, mensagem, nada. Liguei várias vezes e na única vez que me atenderam, ficaram de retornar em dez minutos, e nada. Procurei informações com uma amiga que conhece pessoas que lá trabalham, e que conseguiu saber que estavam com problema para digitalizar os exames, que eram muitos, mas que eu teria que fazer um complementar no dia 10 de novembro. Só fiquei sabendo porque usei da amizade, ninguém me ligou. Fui fazer o exame complementar e o resultado sairia em um mês. Neste dia do exame, enquanto esperava o carro me buscar, uma senhora muito humilde e meio atordoada me pediu para chamar um carro de aplicativo. Enquanto chamava, me perguntou se eu sabia de uma clínica particular onde pudesse fazer a mamografia, porque só teria vaga para ela fazer no HA em seis meses, e me mostrou o seio desfigurado. Disse que mostrou no balcão, mas mesmo assim teria que esperar. Espero sinceramente que esta senhora esteja na luta para se curar. Eu tinha resolvido me consultar em Brasília, para onde iria a serviço no dia 11 de dezembro, mas exatamente no dia 10 dezembro, à noite, minha amiga ligou e disse que conseguiu a informação privilegiada que eu teria que fazer uma ultrassonografia, e que seria dia 5 de janeiro.
Antes de viajar, no sábado, 11, esse caroço me deu um alerta e pela primeira vez doeu e a pele ficou vermelha. Cheguei em Brasília com a sensação ruim, através de uma amiga consegui uma consulta em uma clínica em Taguatinga para segunda-feira, 13. Tentei ao menos conseguir meus exames de mamografia que havia feito no HA e não consegui. Foi meu filho, sobrinho e amiga pessoalmente tentar pegar em Macapá para me enviar antes da consulta, mas não conseguiram. Me colocaram para falar por telefone com uma atendente, e tive como resposta que para eu ter acesso a um exame que fiz, referente a minha saúde e vida, depois de seis meses sem resposta, teria que enviar email para a diretoria explicando meus motivos e esperar. Desisti do HA a tempo. Em dois dias fiz a mamografia, ultrassonografia e biopsia, e diante das evidências a mastologista antecipou que a chance de ser maligno era de 95%.
Voltei para Macapá, fui aconselhada a aceitar ir para Porto Velho, mas com fé em Deus, apoio irrestrito da minha família e alguns amigos, e dos meus chefes, em 26 de dezembro decidimos que eu viria para Natal, e aqui estou. Tive que mudar meu domicílio para fazer meu tratamento via SUS através de uma instituição filantrópica que é sustentada com recursos públicos e de doações, os impostos do cidadão ao comprar qualquer alimento ou medicação pode ser convertidos para esta instituição ou outras de apoio a pacientes com câncer, basta dizer o CPF no caixa. Nada falta, nem lanche para as famílias que vem do interior, nem carinho, internet, aconchego, atenção, transporte para quem não tem como chegar até lá. Refiz alguns exames de rotina, e no dia 26 de janeiro passei pela minha primeira sessão de quimioterapia vermelha, acompanhada por minha irmã e muitos profissionais atenciosos e guardiões, sempre me orientando e tirando dúvidas. No dia 28 de janeiro recebi uma ligação do Hospital do Amar, e adivinha? Pra me comunicar que eu precisaria fazer minha ultrassonografia porque identificaram uma alteração. Educadamente agradeci a pessoa e expliquei que a necessidade havia me trazido para outro estado e que já havia iniciado o tratamento. Me senti mal em dizer isso, não sei de quem é a culpa, nem porque isso acontece, mas com certeza não era da moça, que ficou constrangida no telefone.
Aqui estou neste 4 de fevereiro, assim como dezenas de amapaenses, longe de sua casa, da família, do trabalho, da rotina. Eu estou em uma situação boa, mas a maioria não. Precisam fazer coleta e promoções para pagar aluguel, comida e transporte, sofrem por estar distantes, tanto os pacientes como acompanhantes desenvolvem doenças como depressão e ansiedade, isso atrapalha o tratamento, causa insegurança, medo, angústia. No Amapá somos impossibilitados de fazer estes tratamentos perto da família, com direito a ir e voltar para casa, sem humilhações, muitos são obrigados a dar aquele jeitinho brasileiro para ser beneficiado com um direito que é seu, que é acesso à saúde, garantia de tratamento humano, a Lei dos 30 dias é só um sonho, espera-se tanto por um resultado que quando chega, capaz de não ter mais jeito, morre-se esperando uma vaga, morre-se por falta de medicamentos, morre-se por falta de atenção, de saudades da família, da casa, por falta de humanidade e responsabilidades.
Alguém sabe dizer porque o Hospital do Amor demora tanto para dar um resultado, quando dá? Alguém sabe se os compromissos assumidos pelos parceiros são cumpridos? Se eles têm como agilizar os resultados e serem mais cuidadosos como quem procura atendimento? Se empresários do Amapá são incentivados a investirem no HA? Há política de incentivo para que os impostos sejam investidos no HA? Graças a Deus ainda podemos contar com instituições como IJOMA e ONG Carlos Daniel, nascidas da indignação e sofrimento com todo este descaso. Seus dirigentes lutam diariamente para que não parem, e recebem ajuda de algumas empresas, órgãos públicos e pessoas, ou a situação seria bem pior. Onde assumimos nossa responsabilidade em não compactuar com a falta de responsabilidade das gestões no tratamento de câncer? Quando vamos parar de aplaudir, por questões pessoais, o puxadinho que fazem eleitoralmente em vez de cobrar atitudes sérias? Quando vamos parar de exportar doentes de câncer para outros estados e jogar para outros a responsabilidade que é nossa?
Texto: Jornalista Mariléia Maciel